sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Um texto que eu gostava de ter a experiência "buarquiana" necessária para o conseguir escrever, mas visto que apenas há uns meses tive acesso a uma quantidade razoável de discos dele e mesmo assim faltariam ainda bastantes discos para poder escrever um texto como este de Maria Alzira Brum Lemos.

"AS CANÇÕES QUE VOCÊ FEZ PRA NÓS

Chico

Aqui é a tal da janela que você nunca cansou de encantar, embora hoje, falando sério, talvez nem queira mais cantar. Depois da ditadura, da semiótica, do excitante, de bocados de gim, das filosofias, da poesia concreta, do baseado, da política, do rock'n roll, depois de tanta música, prosa, verso, prozac e papo furado, depois da banda passada. Aqui é a tal da janela, ou, melhor, agora da ciberjanela. Pois é, Chico, essa moça tá diferente, a música popular brasileira tá diferente, o país tá diferente. Mas não estamos te passando pra trás, não. As canções que você fez estão aí, pedaços de nós, conterrâneos seus, a nos descobrir, Brasil que não se vê na TV, e a nos revelar, parintintins moderninhos, corações suburbanos, donas com tufões nos quadris, Rosas com rimas e sem projeto de vida. É por isto que tomo a liberdade de te incluir naquela linha de narradores que descrevem terras, gentes e lutas e, ao narrar, nos criam e recriam, nós, lazarilhos, os que nas rodoviárias assumimos formas mil, em enchentes amazônicas, explosões atlânticas, alegorias, carnavais, proparoxítonas e paradoxos. É por isto que eu te vejo ao lado de Gregório de Mattos, Euclides da Cunha, João do Rio, entre aqueles que, além dos significados, trouxeram para dentro de seus textos música, cores, formas e movimentos. Ficasse só nisto, Chico, como mais um narrador da nossa modernidade cambaia, já seria suficiente. Mas, como eu resolvi fazer um texto bem pra frente, dizendo realmente o que é que eu acho, preciso ser muito sincera e clara. Em suas canções sua voz de autor se amalgama ao povo, dono da voz, de um jeito manso, que é só seu, mas de um jeito nosso, que, agora, sabemos, é um jeito mundial de estreitar nós entre as línguas e os costumes: a música popular. Dando um chute no lirismo e um fora no violino, a música popular brasileira é, como diz Jean Laude, não uma forma, mas um modo de agenciamento das formas. A música popular é o que não tem governo nem nunca terá, na contramão do cartesianismo e do Adorno. É força ao mesmo tempo civilizatória e libertária em que, como tão bem fala o José Miguel Wisnik, "entram elementos de lirismo, de crítica e de humor: a tradição do carnaval, a festa, o non-sense, a malandragem, a embriaguez da dança e a súbita consagração do momento fugidio que brota das histórias do desejo que todas as canções não chegam para contar".. advinda do "uso ritual, mágico, o uso interessado da festa popular, o canto-do-trabalho, em suma, a música como instrumento ambiental articulado com outras práticas sociais, a religião, o trabalho e a festa". Ou, como você diz, "Cantar a canção da vida... preparando a terra, entornando o vinho... cantar a canção do gozo, preparando a tinta, enfeitando a praça, noite e dia, noite e dia..." Por umas e outras, acho que a música popular brasileira rompe as oposições, tão enraizadas quanto ideológicas, entre civilizado e bárbaro, corpo e alma, corpo e mente, público e privado, passado e presente, nós e eles. Será isto que seu colega Caetano chama de "força estranha" e que em suas canções está presente não só como metáfora inteligente mas, sobretudo, como ritmo e corpo, paródia e força subversiva. Sabia que seu sanatório geral tem muito a ver com os sertões do Euclides da Cunha? Aquela coisa arcaica, porém rebelde: alas de barões famintos, blocos de napoleões retintos e os pigmeus do bulevar a inverter, loucos, a ordem estabelecida. Mas, em vez da ascese revoltosa dos mestiços do Euclides, você, que não vem de celta e tapuia, mas de paulista, pernambucano, mineiro e baiano, nos dá sarapatel, caruru, tucupi, tacacá e feijoada completa O corpo, o gozo, a transgressão, o excesso, a mestiçagem e a mulher como evolução da liberdade. Em toda origem há uma mestiçagem, e, se a ciência não pode provar o contrário, suas canções, repercutindo modinhas e batuques, tropicalizando o fado e enobrecendo o bolero, nos delatam como Calabares nascidos da urgência de cafusas e holandesas e da ausência de pecado nas bandas de baixo do Equador. Que coisa mais Gilberto Freyre, né? Peço licença às feministas, por atravessar suas teses, e ao Rinaldo Fernandes, que escreveu um mestrado sobre o assunto, mas não posso deixar de falar das mulheres, ou, melhor, do feminino, que em suas canções cumpre, muitas vezes, o papel político de denunciar, desorganizar o projeto, desestabilizar o establishment.. Mulheres que não são uma outra voz do dono, como as Bovarys, Luísas e Capitus, mas donas da voz, dos sentimentos e da ação. Mulheres que não são tampouco o esteio da norma e, portanto, da propriedade e da repressão. Agora está parecendo manifesto anarquista... Mulheres que são cria da rua, fêmea, par, irmã, incesto, Rosas do povo, vadias. Mas que te reconhecem e jamais te esquecem. Voltamos sempre, Chico, na boca do povo, cantando, para a nossa casa, esta "zona temporária autônoma", como diz o Hakim Bey, que partilhamos, contemporâneos. Este lugar bagunçado, que é feito da mesma matéria dos sonhos e das canções. É por tudo isto, e por muitas coisas mais, que considero suas canções como um clássico, ou, nas palavras de Italo Calvino, uma obra que nos chega trazendo impressa a marca das leituras que a precederam a nossa e deixa, ela própria, uma marca na cultura. Talvez seja um pouco atrevida nisto, como no resto. Será por causa de algum anjo safado. Mas vou até o fim. E você, com suas canções, vai me seguir aonde quer que eu vá. Não devo ter dito aqui mais do que o que você já ouviu e muita gente sabe sobre sua arte. Para fazê-lo, apropriei-me de idéias e frases de Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Amálio Pinheiro, José Miguel Wisnick, Hermano Vianna, Silviano Santiago, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Italo Calvino, Hakim Bey, que entendem desses e de outros assuntos. E também das suas; me perdoe, por favor, se não lhes faço justiça. As fichas não caíram todas, mas você deve estar louco para ouvir Fluminense e River Plate. Obrigada, Chico, pelas canções que você fez pra nós.
Beijos, tudo de bom"

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